terça-feira, 30 de dezembro de 2008

O tesouro de Moisés

O Doutor Manuel dos Santos da Mata era natural da Ericeira, advogado na Casa da Suplicação e, durante alguns anos, exerceu nesta Vila o cargo de Juiz Ouvidor, nomeado pelo Conde.
Residiu em Lisboa, na Rua de S. Roque, casado com Dona Josefa Inácia dos Santos da Mata, de quem teve uma única filha, Dona Ana Bárbara, a qual casou com o Capitão-Tenente da Armada Real, Bento Freire de Carvalho e Figueiredo, natural de Coimbra.
Pouco depois de 1814, tendo falecido o advogado e a esposa, a filha e o genro entraram na posse dos bens deixados pelos falecidos.
Na Ericeira esses bens eram constituídos por uma importante casa de lavoura, composta, além da Quinta de Vale-Janeiro, de muitas terras de semeadura, vinhas, pomares, pinhais, hortas, etc.
Tinha também celeiros, adegas, lagares, abegoaria com duas e mais juntas de bois e numerosa criadagem.
No seu testamento deixou o advogado um legado, em dinheiro, à Santa Casa da Misericórdia da Ericeira, mas o genro, alegando certas razões, recusou-se a cumprir parte do legado.
Bento Freire veio residir para a Ericeira, na excelente casa de moradia que fora do sogro, casa situada na Rua do Correio (hoje Rua 5 de Outubro) e que, actualmente, pertence à família Machado, da Picanceira.
Tendo-lhe falecido a esposa, o Capitão-Tenente tinha em sua companhia, a título de governanta, uma senhora irlandesa, chamada Sara Stuart; e para lhe dirigir as lavoiras, tinha como feitor, um homem dali da Carvoeira, chamado Moisés.
Este era um homem alto, magro, de cara rapada, um pouco vesgo, modos bruscos e voz forte e áspera.
Fosse de dia ou de noite, de Verão ou de Inverno, o Moisés andava sempre armado de espingarda, trazendo a tiracolo o polvarilho e o chumbeiro, uma cabaça com vinho e um bornal contendo pão e queijo e uma casca de côco, por onde bebia o vinho da cabaça. Era este o equipamento que o feitor usava sempre, e nunca foi visto na rua sem ele, nem sem ser acompanhado por dois ou três cães ferozes e atrevidos, quiçá amestrados pelo dono na delicada arte de morder em toda a gente.
O Moisés era solteiro e vivia só, numas casas do seu amo, situadas à entrada da Rua do Alcatrão, que é actualmente o prolongamento, pelo norte, da Rua da Fonte do Cabo. Estas casas foram demolidas há alguns anos, mas ainda ali existem a casa do lagar e a adega do amo do Moisés. Na primeira está uma oficina de ferrador, e na segunda está um Teatro. As casas onde morava o Moisés tinham uma escadaria exterior, em cujos degraus de pedra se juntava às vezes a rapaziada.
Ora uma das coisas com que o Moisés mais embirrava era com os rapazes; e por isso sucedia que, ao voltar às vezes inesperadamente a casa e encontrando a tal escadaria apinhada de garotos, o Moisés enfurecia-se e, coadjuvado pelos seus cães, que arremetiam, distribuía coronhadas a esmo; e fazendo ouvir a sua voz forte e sonora de trombone, invocava aos berros S. Sebastião, pedindo-lhe que mandasse uma boa camada de bexigas que levassem aquela cambada toda. E, entrando em casa furioso, batia estrondosamente com a porta, enquanto os seus cães perseguiam, não menos enfurecidos, os garotos que fugiam espavoridos pela rua fora.
Nestas ocasiões, a tia Pulgôa, que era uma velha que morava ali perto, benzia-se horrorizada, acendia as velas do seu oratório e rezava a Magnificat como em dia de trovoada solene.
Imitando o amo, o Moisés não se confessava nem ia à missa; e, como Bento Freire fosse partidário acérrimo do Sr. Dom Pedro, e por conseguinte figadal inimigo do Sr. Dom Miguel, amo e criado, entre a população da Vila, católica e lealista, gozavam fama de malhados, ateus e pedreiros livres.
Além de tudo isto, porém, havia ainda uma coisa a meu ver gravíssima. Segundo certificavam algumas pessoas bem informadas, o Moisés tinha pacto com o Diabo.
Parece que por vezes, a altas horas da noite, se viam luzir através das fendas da porta e da janela, umas certas labaredas vermelhas indicativas de diabólicas conjuras; e a tia Pulgôa afirmava que nessas ocasiões cheirava por ali a pez e a enxofre que tresandava, não ignorando ela a grande importância que têm aqueles dois ingredientes nas operações do laboratório químico de Satanás.
Falecendo, Bento Freire deixou os bens aos seus parentes de Coimbra e o usufruto vitalício deles à irlandesa Dona Sara.
O Moisés ficou exercendo o cargo de feitor, e parece que o amo o contemplara no testamento com algumas centenas de cruzados.
Este pecúlio, junto ao que ele certamente acumulara durante anos, pois que era homem parco e frugal e, segundo as vizinhas diziam, nunca comia comida feita ao lume, grangeara-lhe fama de ter dinheiro enterrado.
Um velho criado da casa, despedido por ele e que andava a mendigar,dera maior curso ao boato afirmando que o Moisés tinha grossa maquia enterrada debaixo do peso de um dos lagares da adega do amo; e a voz pública dizia ainda que o feitor estava de posse de uma grande quantia de dinheiro que pertencia a um irmão dele, que havia ido para o Brasil.
Uma ocasião o Moisés dirigiu-se a uma loja e pediu ao lojista que lhe guardasse uns objectos que lhe entregou.
Eram duas caixas de lata, redondas, de um palmo de diâmetro. Estas caixas tinham as tampas toscamente soldadas e pesavam extraordinariamente. O lojista cedeu ao pedido e guardou as caixas.
Passados uns três ou quatro anos o Moisés foi reclamar o depósito. O lojista prontamente lhe entregou, recebendo do feitor muitos agradecimentos por se ter encarregado dele.
Convém dizer agora aqui as explicações que o lojista me deu acerca dos pactos diabólicos do Moisés.
Conjecturava o lojista que o Moisés havia acumulado nas caixas, não só o legado do amo, como também o produto das suas economias; e, não querendo fazer soldar as tampas ds caixas por um operário competente, a fim de não dar a conhecer o seu segredo, resolvera-se ele mesmo a fazer aquele trabalho. Ora o Moisés não tendo conhecimento algum do ofício de latoeiro, teria de fazer vários ensaios e experiências, até conseguir soldar toscamente, as tampas das caixas.
Daí os fogachos noturnos e o cheiro a pez e a enxofre das soldaduras, que tanto aterrorizavam a tia Pulgôa. O que o lojista não me soube dizer, foi o motivo que levou o Moisés a fazê-lo depositário das caixas. Isto constitui um segredo que o feitor levou consigo para a sepultura.
Rodaram os anos e o Moisés foi vivendo sempre só, áspero e taciturno, exercendo o seu cargo de feitor, sob as ordens da usufrutuária irlandesa, não largando nunca o seu antigo equipamento, os seus cães e a sua velha espingarda, a qual, pelo uso contínuo de ele a trazer sobre o ombro, já tinha a madeira gasta, a ponto de se ver o ferro do cano através de um buraco produzido pelo atrito, contínuo sobre o ombro.
Um dia, depois de 70 anos de uma saúde de ferro, o Moisés adoeceu, e como detestava médicos, padres e a gente da justiça, tanto como detestava os rapazes, recusou-se a receber médico, padre e tabelião.
- Se um dia estiver doente, dizia ele por vezes, não quero ver à minha beira nem médicos, nem padres, nem justiças.
Nesta ordem de idéias recusou médico, recusou medicamentos, recusou tudo e ficou só. Só com os seus gatos e os seus cães.
Passados poucos dias foram dar com ele morto, deitado na sua cama, tendo os seus dois gatos enroscados à cabeceira, um de cada lado, e os cães deitados sobre os pés.
A irlandesa que então vivia em Lisboa, donde vinha, por vezes, passar temporadas na Ericeira, faltando-lhe o velho feitor, arrendou as propriedades a várias pessoas.
Viveu ainda alguns anos a Dona Sara em Lisboa, em companhia de uma criada chamada Clara, que era irmã do Moisés; mas assim que a irlandesa faleceu, os parentes de Bento Freire vieram logo de Coimbra à Ericeira, dividiram entre si os bens e venderam-nos a diferentes pessoas, desfazendo-se assim a importante casa que fora do Dr. Manuel dos Santos da Mata.
Passados alguns anos, na casa onde vivera e morrera o Moisés, morava um pedreiro em companhia de uma irmã. Eram ambos solteiros e muito pobres.
O reumático, ou um desastre, estropiou uma perna ao pedreiro que, por tal motivo, teve de deixar o ofício e abriu uma taberna nos baixos da casa.
Passado pouco tempo, a irmã do pedreiro adquiriu por compra, a casa onde morava com o irmão, e este adquiriu uma outra casa na mesma rua, e para lá transferiu a taberna.
A nova proprietária da casa de morada do Moisés casou com um cocheiro que, em Sintra, montou casa de alquilador.
Estes factos levaram a voz pública a dizer que o pedreiro e a irmã haviam descoberto o tesouro do Moisés. Eles porém negavam, alegando que as compras dos prédios haviam sido feitas com o produto das suas economias.
Nestas condições se foi passando o tempo, o caso esqueceu, e hoje já ninguém fala nele.

"Tia Maria Àsquinha"
Jaime Lobo e Silva - Dezembro de 1915

1365

17 de Abril de 1365

El Rei Dom Pedro I restituiu a Dona Violante Lopes Pacheco o senhorio da Vila da Ericeira.
27 de Agosto de 1365
Dona Branca de Sousa, filha de Dona Violante e de Dom Diogo, por falecimento de sua mãe e ausência de seus irmãos, Álvaro e Lopo, tomou posse do senhorio da Ericeira.
"Anais da Vila da Ericeira", Jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932

1344

18 de Novembro de 1344

(foto de D. Pedro I)


Faleceu Dom Diogo Afonso de Sousa, que havia herdado a Vila de sua tia-avó Dona Maria Anes de Avoym.
Era casado com Dona Violante Lopes Pacheco, para quem passou o senhorio da Ericeira, até que El Rei Dom Pedro I lho tirou, por ela ser irmã de Diogo Lopes Pacheco, suposto assassino de Dona Inês de Castro.
"Anais da Vila da Ericeira"
Jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932

1337

30 de Julho de 1337

Dona Maria Anes de Avoym, Senhora da Ericeira, confirma nesta data o seu testamento no qual fizera doação da Vila a seu sobrinho-neto Dom Diogo Afonso de Sousa.

"Anais da Vila da Ericeira", Jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932

Espiga em alcunhas

Dia da espiga na Ericeira
Uma história através de alcunhas
( as alcunhas estão todas em itálico)
- Sentado estava o 'Cardeal' na Abadia esperando que os seus fiéis chegassem para começar as cerimónias do dia da espiga.
Passavam alguns minutos das nove da manhã, quando ao longe se ouviu o trote do 'Corisco' que já tinha atravessado uma 'Matalonga', até chegar ao seu destino. Apeou-se o 'Tarzan' que trazia o 'Macaco' consigo e que estava um pouco irrequieto por ouvir o piar do 'Mocho'. Saltou para cima de um 'Barrote' e pos-se de ouvido à escuta. De um pequeno buraco saiu o 'Toupeira', que já tinha a sua tenda montada e preparava-se para matar o 'Bicho', um pequeno 'Lagarto' que ali apareceu, e mais distante uns metros, também a 'Lagartixa', que tratava dos seus aposentos com grande entusiasmo.
Os raios de sol já rasgavam os pinheiros. Neles pendiam as teias de 'Aranha' que pareciam um véu de prata com o bater do sol. A Abadia estava quase cheia. Centenas de fiéis começavam a celebrar. Um cheiro a 'Peixe Frito', a 'Bacalhau' e a 'Carapau' já começava a andar no ar, enquanto o 'Garrafão' permanecia deitado à sombra a descansar as primeiras horas da manhã porque ao chegar a meia-tarde, estaria esgotado de tanta canseira.
Enquanto que por aqui isto estava calmo, no lado oposto o 'Xá' esperava o 'Rei' que como de costume viria de Cascais passar a espiga à Foz.
Na ribeira, 'Mil Homens' os esperavam para o escoltar até à sua tenda onde uma bela mesa já posta o aguardava, onde não faltava o 'Lavagante' da nossa costa.
'Tarau' 'Papum', 'Tarau' 'Papum'. O 'Manacoia' deitava foguetes. Era a chegada do 'Rei' que não era 'Calão' e tinha 'Fala Grossa', ordenou: 'Fecha o Comércio', hoje na Ericeira não se trabalha! O vinho será a 'Ralaças' para todos e haverá festa. Contratei um 'Cómico', um 'Faquir' e um 'Fadista' e para as crianças, um boneco 'Marreta' que será 'Bestial' para manter a alegria habitual. O desfile começava a organizar-se. À frente ia a 'Zaranza' com um 'Pauzinho' a bater num 'Tacho Velho', com força, 'Tuca' 'Tuca', 'Tuca' 'Tuca'. Este todo torto, já não tinha asas; mais parecia o 'Três Cabeças' . O 'Zé das Cabras' levava o 'Chocalho' pendurado, fazendo um barulho que fazia doer as 'Orelhas'.
Mais atrás, vinham 'Trinta' personagens, todas ligadas ao 'Rei', que faziam de guarda-costas e armados aos grandes cestos de que se faziam acompanhar. O 'Mau-Olho' trazia na mão direita o 'Garrafão' de 'Cinco Litros' e do outro lado, bem apertado, o 'Peru'. Um pouco mais atrás, lá ia o 'Pinto Careca', com o seu passo curto a ver se apanhava o 'Galinha' que ia conversando animadamente com o 'Tanoeco' e o 'Estricolim'. A 'Tintureira', sempre apressada, dava de vez em quando, umas corridinhas e levava a reboque o 'Zé Burrinhas' por cima do 'Cascalho' que, sem reparar, pisou o 'Có-Có'. O 'Massapez' que era 'Habilidoso', 'Rodeia' por outro lado, por causa do mau cheiro, e para ver chegar o 'Rei', o que acontecia nesse momento. Sua magestade foi falar com o 'Xá' que estava num pequeno 'Xalé', situado ao pé da ponte de ferro.
Era uma hora da tarde e já havia muita gente alegre. Na tenda do 'Rei', o primeiro prato foi caldeirada, que tinha várias qualidades de peixe: 'Galhudo', 'Cachucho' e 'Pintarroxa', não faltando o 'Dentinho de Sargo' que a um canto parecia chupar a cabeça dum 'Xarrinho'.
Seguidamente, vieram as carnes e houve logo uma voz que disse: cheira que consola! Era o 'Coelho', a 'Lebre' e a 'Raposa'. O 'Pinafum' disse: ó 'Licas', de carnes é que eu gosto! 'Ninguém' toca! 'Fuçao', agarrou-se à concha com fúria, dizendo à 'Fome Negra'. Em seguida bebeu um 'Pirolito' e foi-se deitar debaixo de uns arbustos ao lado do 'Sirineu' que já assobiava que nem um 'Pintassilgo'. Muito 'Pilas', o 'Guéu' foi para o 'Gamanço' de frutas e trouxe 'Cabeça de Melão' e 'Abóbora' para oferecer ao 'Rei' que nessa altura, chupava um 'Esquimó', para refrescar.
Entretanto chega o 'Xá' com uma notícia da Abadia assinada pelo 'Cardeal': - Aqui corre tudo às mil maravilhas. O 'Bigodes' já partiu alguma loiça e anda a rolar no meio das silvas. Tudo normal e bastante animado.
Ao receber isto, o 'Rei' que era muito 'Babão' e 'Xáxá', deu uma 'Risota', manda logo organizar um 'Balhão'. O 'Berguilhas' com o seu banjo e o 'Fanan' com uma gaita 'Táta-Táta', puzeram a 'Manã' e a 'Repolha' a cantar 'Baiana' 'Baiana'.
O 'Tuta' e o 'Nixa' com o 'Ará' e o 'Alhó', começaram com as suas 'Lamúrias' habituais, e áquela hora da tarde já os garrafões não se aguentavam em pé, tão fraquinhos, que não se aguentavam.
O 'Mosca', a 'Mioca' e o 'Barata', fizeram uma limpeza aos restos da comida.
A festa estava animada mas quem apanhou uma 'Carola' foi o 'Chocha' ao ir buscar a 'Cinturinha de Prata' para dançar. Esta com a alegria que estava, empurrou-o e ele foi cair em cima do 'Ouriço'. Muito 'Refilão', disse alguns palavrões: 'Porras', 'Porras', mas a corneta do 'Catanixa' abafava o som de tanta 'Trafulha'. O tempo começava a ficar com 'Cara de Inverno', caia um 'Poalho' e começava a escurecer.
Os 'Caga Lumes' já faiscavam no campo. O 'Canário' já não cantava; só se ouvia o piar do 'Gaivota' que já vinha com um 'Grão' na asa, meio torcido mas muito falador.
O 'Rei' abandonava a barraca e ia de regresso a Cascais. Tinha perdido a calma e já nem o 'Xá' lhe fazia bem. Agora só com água mineral.
O 'Cardeal' continuava bem e dizia ao 'Pinocha' para começar a carregar a camioneta com os que não pudessem aguentar-se de pé. O 'Russo' dizia: - 'Tá Névoa', já se vê mal! E lá andava ele de gatas à procura da velha garrafa que, 'Triste' por ter sido posta de parte e desprezada depois de um dia de grande movimento. 'Zé Anão' agarrado à 'Paulita' e pedindo ajuda ao 'Cagadiço', lá subiu para o carro.
Era o fim de mais um Dia da Espiga. Algumas 'Mantas' sempre vêm ao de cima ao passar o "Jogo da Bola". 'Lapina', de papoila na mão e de 'Tunica' vestida, mantinha-se 'Aleta' para o trabalho do dia seguinte.
Alguns que abusaram de certos frutos menos maduros, iam direitos à 'Pia'. Era o caso do 'Bugalho' e do 'Canina' que não se sentiram nada bem. Assim não acontecia com a 'Tixa' que vinha toda florida e sorridente por ter apanhado a espiga e flores de Maio.
De braço dado com o 'Zé Inglês', chegaram ao "Jogo da Bola" perante o olhar daqueles que só se propuseram a ver passar os alegres foliões desta tradição antiga, da não menos antiga Vila da Ericeira.
Aníbal O. Santos

1304

20 de Fevereiro de 1304


Foi demarcada e coutada a Vila da Ericeira, por mandado de El Rei Dom Dinis, a favor de Dona Maria Anes de Avoym, de seus descendentes e de seus sucessores, e confirmados os previlégios dos moradores.
"Anais da Vila da Ericeira", Jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932

1301

4 de Janeiro de 1301.


El Rei Dom Dinis cedeu a Ericeira, por troca, a Dona Maria Anes de Avoym, casada com Dom João Fernandes de Lima, O Batissela e filha de Dom João de Avoym, que fora senhor de Portel.
"Anais da Vila da Ericeira", Jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932

1229

1229
Dom Frei Fernão Rodrigues Monteiro, 4º Mestre da Ordem dos Cavaleiros de Aviz, concede o primeiro Foral à Vila da Ericeira, instituindo o seu Concelho.
"Anais da Vila da Ericeira"
Jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Ti Maria Ásquinha

Aí pelo último decénio do século XIX, numa pequena casa térrea na Travessa do Estrela, defronte da farmácia Galrão, morava uma velha de mais de 70 anos. Era a tia Maria Ásquinha.
Muito pobre mas muito asseadinha, miudinha, baixa, rosto sardento, e com uns olhos parados e inexpressivos que lhe davam o aspecto de aparvatada.
Mas não era nada parva a tia Ásquinha, vivia de fazer meias de lã para os marítimos, de recados e de esmolas que lhe davam, sendo muito estimada, não só das pessoas que lhe aproveitavam os serviços, como geralmente, de todos os que a conheciam como boa mulher e muito sossegada.
Um dia de Inverno, aí por 1891 ou 93, a tia Ásquinha foi a uma padaria e comprou um pão de quilo, em massa. Trouxe-o para a sua casa e, com um pouco de azeite e uma quarta de açúcar, fabricou uma boa travessa de filhoses, que colocou em cima da sua banca de cabeceira. Em seguida fechou à chave a sua porta de postigo, encheu de rapé a sua caixa redonda, de lata, e meteu-se na sua cama.
Passaram dois ou três dias, e a falta da tia Ásquinha começou a ser notada pela vizinhança.
Estará morta, não estará morta, muitos comentários, etc. etc. e vá de bater fortemente à porta da casa da velha e chamar: Ó tia Ásquinha! Ó tia Ásquinha! Ó tia Maria!
Nada; ninguém respondia; o silêncio era absoluto. Toca de prevenir as autoridades. Vieram Regedor e Juiz da Paz com escrivães e mais acólitos. Depois de interrogada a vizinhança e de se obter informações, foram renovadas as fortes pancadas na porta e os brados, mas lá dentro continuava o silêncio.
Não há que ver, está morta. Deliberaram as autoridades mandar arrombar a porta. Veio um carpinteiro, mas a fechadura da porta da Ásquinha não era coisa assim de pouco mais ou menos, pelo que o artífice teve que martelar muito e forte, antes que conseguisse franquear a entrada.
Aberta finalmente a porta, o mulherio agrupou-se em volta, na rua, e as autoridades entraram.
Na casa de entrada, pavimentada a junco, tudo muito arrumado e muito limpo. Penetraram em seguida no quarto ao lado, alumiado pela escassa luz de uma pequena janela e olhando, viram a travessa de filhoses já meio comsumidas, em cima da banca de cabeceira, e a tia Ásquinha muito bem deitada na sua cama, fitando todos com os seus olhos parados e inexpressivos, e que na sua voz calma, serena e muito pausada, exclamou: Ora louvado seja Nosso Senhor para sempre; nem já uma pessoa pode estar sossegada em sua casa.
"Tia Maria Àsquinha"
Jaime Lobo e Silva, Outubro de 1932

Ti Moleiro



Fernando Bonifácio da Silva Brites
"Moleiro"


Nasceu na Ericeira , em 5 de Outubro de 1925. Filho de Gregório da Silva Brites e de Maria José Bonifácio, casou em 1947 com Maria dos Santos da Silva Versos Brites, de quem teve 8 filhos, três deles pescadores; mestres Francisco, António e José Versos Brites.
A alcunha de "Moleiro" vem do facto de aos nove anos, quando ficou órfão de pai, ter ido morar com uma irmã, que era casada com um moleiro. Apesar da pouca idade, ajudava o seu cunhado no trabalho de moleiro e na distribuição da farinha, pelo que passou a ser conhecido pelo "Moleirinho".
Apesar de a alcunha nada ter a ver com o mar, iniciou aos 14 anos a sua longa vida de pescador, na Ericeira. Pertence à geração de pescadores que faz a ligação entre o velho e o novo pescador desta nossa terra.
Viveu a experiência com camaradas(1) da velha geração de pescadores, em que os barcos se deslocavam, ora a remos, ora à vela, em que tudo era muito mais difícil. Assim como durante vários anos foi mestre de embarcações já de grande porte, praticamente iguais às de hoje, equipadas com bons motores, sondas electrónicas, rádio, aladores elétricos, etc.
Hoje, apesar destas embarcações serem de maior envergadura, a vida do destemido pescador da Ericeira, não deixa de estar constantemente em perigo, não só devido ao habitual mar bravo que assola a costa ocidental portuguesa, como principalmente ao estado precário do nosso portinho. Desde 1981(2) e até há bem pouco tempo que o varadouro das nossas embarcações era feito através de uma rampa que ainda se encontra, logo pela parte sul do molhe do porto da Ericeira.


Anteriormente a esta data, os barcos atracavam na praia, como ao longo dos séculos o fizeram. Actualmente fazem-no numa pequena rampa junto ao início do pontão, que se encontra em reconstrução (uma vez mais).
Toda a distância entre "a pancada de mar"(3) e a praia era muito maior do que é hoje, além de muito mais perigosa, não só devido ao modo de deslocação e porte das embarcações, como às fortes correntes que vinham do Algodio e perto da praia a perigosa corrente que fazia no estreito entre a "lage grande" e as pedras junto ao viveiro que se encontram pela parte de terra, o chamado "Poço da Lage Grande"(4).

É durante a actividade de Fernando "Moleiro", como Sinaleiro, que os sinais através de rádio começam a ser feitos para a saída e entrada dos barcos na primeira rampa acima referida. O local onde os sinais são feitos actualmente, continua a ser o mesmo de há 100 anos atrás.
Foi através da criação em 1986, da Associação dos Armadores da Pesca Local, Costeira e Largo da Zona Oeste, com sede em Peniche, tendo como delegado na Ericeira, Joaquim Manuel Dias Leitão "Reguingas", que começou a ser dado ao Sinaleiro uma avença mensal para pagamento dos seus serviços.
A Ericeira agradece igualmente a este velho pescador, Fernando Bonifácio "Ti Moleiro", por esta nobre missão de trazer a bom porto homens e embarcações.
(1) - Termo usual na Ericeira, para definir os tripulantes de uma embarcação. É de longa data pois é conhecido desde o século XIX.
(2) - O primeiro barco a atracar nesta rampa foi o "Novo Cruzeiro" do qual era mestre o historiador ericeirense, Leandro Miguel dos Santos.
(3) - Zona onde as ondas rebentam ou se começam a desfazer. Esta zona, antes do molhe norte estar feito, ficava sensivelmente pela alturadas sete braças de profundidade (12 metros). Hoje, esta zona, não se encontra definida em virtude do assoreamento de toda esta área do porto. É conhecida pelos jovens surfistas como "o Pico".
(4) - Existe também um escolho submerso no extremo da entrada do portinho, denominado "moita" que dá origem à anticipação da ressaca, quando as vagas assaltam a praia produzindo o "estrangulamento" da entrada, especialmente quando sopram ventos do quadrante sul. A eliminação ou neutralização deste escolho tornaria mais desafogada a entrada e saída dos barcos.
A existência de um estoque de água que, partindo do poço da "lage grande", além de contrariar o movimento das embarcações que se dirigem para a praia, provoca "macaréus" que as "enxovalham" a meio do porto, o que representa outro perigo.
A construção do molhe no lado sul, tapando o poço, acabaria com tão sério contratempo, além de ao prolongar-se sobre a "lage grande", vir proporcionar um excelente apoio para operações de salvamento, também deteria o assédio das vagas sobre o porto quando há ventos do lado sul (Transcrição de um artigo sobre o porto da Ericeira publicado no "Diário de Notícias" a 4 de Janeiro de 1958, escrito por José Caré Júnior). Posteriormente a esta data, em princípios da década de 60 do século passado, este "poço" ou "estreito" foi tapado com um pequeno muro de cimento armado que se prolongava uns metros por cima da "lage grande". Mais tarde, em 1982, este mesmo muro foi prolongado e alteado tal como hoje se encontra.
(baseado no livro "Os sinaleiros do mar na Ericeira" de Leandro dos Santos, 1994)

sábado, 27 de dezembro de 2008

Ti Chico Serrão



Francisco Antunes Serrão


"Fução"


Francisco Antunes Serrão, nasceu em Peniche em 3 de Fevereiro de 1931. Filho de José Martins Serrão e de Maria da Conceição Antunes Serrão. Viveu desde miúdo na Ericeira e, como grande parte dos rapazes daquela época, foi criado na praia da Ribeira, onde aprendeu a arte de pescador. Casou com Ilda Duarte Serrão em 1949, de quem teve oito filhos.
Após a morte do "Zé Lebre", é ele que começa a fazer sinais. A princípio à embarcação do seu filho, passando mais tarde a fazer a todas as outras embarcações, através de aparelho de rádio. Assim se manteve durante anos, até que, quando o "Ti Moleiro" se reformou como pescador, lhe cede o seu lugar em virtude de este ser mais velho. No entanto, Francisco Serrão nunca deixou de estar sempre pronto para exercer esta voluntariosa actividade, sempre que o pescador da Ericeira assim o necessitava. Não será por falta desta longa escola de pescadores-sinaleiros, que o pescador da Ericeira deixará de ir ao mar, não venham "outros perigos" estranhos à vontade dos pescadores.
Esperemos que estes sinaleiros não sejam os últimos desta nobre actividade que durante séculos, serviu de farol e anjo da guarda ao destemido e arrojado pescador desta sempre bela e grandiosa Ericeira onde, tivemos a bendita sorte de ter nascido.
Não devem ser esquecidos também, os nomes daqueles pescadores que, uma vez por outra, fizeram sinais. Aqui ficam alguns, para que também eles sejam lembrados:


- Sebastião Mira "Peia"
- João Jacinto Morais Sobrinho "Pedrada"
- António Inácio "Rodeia"
(baseado no livro "Os sinaleiros do mar na Ericeira" de Leandro dos Santos, 1994)

Ti Palaia

Anastácio Henriques Arsénio
"Palaia"

Nasceu na Ericeira em 22 de julho de 1916. Filho de Anastácio Henriques Arsénio e de Guilhermina de Jesus Arsénio. Casou com Rosa da Conceição dos Santos, de quem teve quatro filhos, dois deles pescadores; Anastácio e João Arsénio, tendo entretanto enviuvado. Voltou a casar com Ana Esteves Arsénio, não deixando descendência deste casamento.
Após a morte do Sinaleiro Elisário Mira "Estado", começa a fazer sinais durante 5 a 6 anos de 1952 a 1957/58, alternando neste período com o Sinaleiro "Zé Lebre", ficando este, posteriormente, sozinho a exercer esta actividade, apesar de uma vez por outra o "Ti Palaia" ter feito um ou outro sinal.
Para além de ter sido Sinaleiro, como todos os outros exerceu a actividade de pescador, na Ericeira, durante a maior parte do tempo como mestre da sua própria embarcação.
Pertence à velha geração de pescadores em que a simbiose entre eles e o mar, quase toca a perfeição. A união entre estes dois elementos, é fruto do amor e do respeito que todo o pescador tem pelo mar, não podendo passar sem o ver e sem o sentir.
Anastácio Henriques Arsénio, homem de poucas falas, não deixa de ser reconhecido como uma espécie de "lobo do mar" em vias de extinção.
(baseado no livro "Os sinaleiros do mar na Ericeira" de Leandro dos Santos, 1994)

ainda o Ti Zé Lebre

Ainda acerca do "Zé Lebre", o sr. Francisco Barros Duarte Ferreira "Xico Assis", relata um facto insólito que se teria passado num Domingo, entre o ano de 1968 a 1970 (não sabe precisar bem). O "Zé Lebre" e o seu filho Miguel, eram os únicos que se encontravam no mar, num pequeno barco à vela. O mar de repente enbraveceu de tal maneira que passadas poucas horas "serrava o porto de lado a lado". Como não se encontrava alguém que pudesse fazer os sinais, foi este senhor acima mencionado, que fez os mesmos ao Sinaleiro "Zé Lebre". Depois de várias insistências, lá conseguiu convencer este destemido pescador, a não entrar no porto da Ericeira e a arribar a Cascais.
Francisco B. Duarte Ferreira, imediatamente telefonou do Posto de Turismo para o Rádio Clube Português, de que era sócio, para que este posto emissor pudesse alertar as autoridades do Instituto de Socorros a Náufragos, para o tremendo perigo em que se encontrava o pequeno barco da Ericeira.
Mais tarde, o mesmo Francisco Ferreira, encontrando-se no seu serviço em Lisboa, enviou um telex para o mesmo Instituto de Socorros a Náufragos, reforçando o pedido de auxílio que horas antes tinha sido emitido pelo Rádio Clube. O certo é que o Sinaleiro "Zé Lebre" e o seu filho, foram recolhidos por um vazo da Marinha de Guerra, entre o Cabo da Roca e o Cabo Raso.
Quando o "Zé Lebre" chegou à Ericeira agradeceu imenso ao "Xico Assis" por ter feito os sinais, que por ironia do destino, a única vez que os fez, foi para ajudar a salvar a vida ao Sinaleiro que tantas vidas salvou.
"Os Sinaleiros do Mar na Ericeira"
Leandro Miguel dos Santos - 1994

Ti Zé Lebre



José dos Santos Reis
"Zé Lebre"
O Sinaleiro que se manteve mais tempo nesta actividade, 31 anos
Nasceu na Ericeira, a 1 de Julho de 1913. Era filho de António dos Santos Reis "António Canejão"* e de Ana da Conceição Carramona "Ti Ana Canejoa". Viveu maritalmente com Jesuina Duarte Reis, de quem teve dois filhos; Miguel e Carmen. Já estes eram adultos quando, em 17 de Novembro de 1966, casou com a "Ti" Jesuina. Anteriormente teve três filhos doutra companheira, que são a Casimira, o António Pedro "Galhudo" e o Francisco Piloto, mais conhecido pelo "Xico Coxo" que tinha o bar da Ribas. O "Canejão", como era conhecido pelas pessoas mais velhas, foi um dos melhores Sinaleiros depois do "Estado" e aquele que, durante mais tempo fez sinais. O "Zé Lebre", alcunha pela qual era mais conhecido, pôs em terra segura dezenas e dezenas de embarcações, na sua maioria já movidas a motor, durante os 31 anos em que foi Sinaleiro. Apenas se deu um acidente, poucos anos depois de começar a fazer sinais, em 8 de Fevereiro de 1955, com a lancha motora chamada "Wanda", cujo mestre era Frederico Côco, que faleceu neste acidente, assim como o tripulante André Coimbra. Neste naufrágio não se pode culpar o Sinaleiro "Zé Lebre", pois mais uma vez a "água tesa"** que vinha do Algodio juntamente com o mar bravo que fazia na altura contribuiu para que se desse a tragédia. Depois desse naufrágio, o "Zé Lebre" ficou bastante traumatizado e só por insistência dos pescadores e, principalmente, pela confiança que lhe continuavam a dar, é que ele voltou a fazer sinais, durante muitos e largos anos, sem que mais nenhum acidente se desse, embora não tivessem faltado ocasiões. Mas a sua grande experiência e sabedoria em medir a altura certa para as embarcações avançarem, contribuiu para que todos regressassem sãos e salvos a suas casas. Foi no recinto em que será (?) erigido o monumento de homenagem aos Sinaleiros dos últimos cem anos, assim como a todos os outros que não foram ainda identificados, que este homem, sozinho, fumando cigarro atràs de cigarro, passou momentos terríveis da sua vida. Houve invernos em que trabalhou na construção civil e porque era essa a altura do ano em que era mais solicitado, chegaram a ir buscá-lo a Santa Iria de Azóia, a cerca de 70 quilómetros da Ericeira, para vir fazer sinais. Como já foi dito, os Sinaleiros naquele tempo, não eram renumerados. Eram os pescadores que lhes davam alguns peixes para a sua "caldeirada"***. O mestre Zé Miguel, já falecido, um dos filhos mais velhos do mestre Toquim, quando "fazia contas"****, nunca se esquecia de tirar algo para o Sinaleiro "Zé Lebre". Faleceu a 4 de Abril de 1983.
*- Este pescador tinha por hábito, quando andava na faina da pesca e começava a chover, despir a sua roupa e guardá-la na coberta da sua embarcação, para quando parasse de chover poder ter a sua roupa seca. Apesar de já haver fatos de oleado, eram caros para a bolsa do pescador da Ericeira.
**- Termo do pescador da Ericeira para definir correntes muito fortes do mar.
***- Quinhão de peixe que pertence a cada pescador, para levar para o seu sustento. Também se usa o termo "teca" apesar deste termo definir qualquer quantidade de qualquer coisa.
****- Dia da semana, geralmente à sexta-feira à tarde ou ao sábado, para se fazer a contabilidade de todo o dinheiro que fizeram da semana anterior até à quinta-feira. Estas contas são feitas da seguinte maneira: depois de deduzidas as despesas de alimentação, combustível e outras pequenas despesas só referentes ao barco durante este período da semana, divide-se o lucro em tantas partes como camaradas (tripulantes) mais cinco partes referentes às artes e ao barco. A compra ou arranjo de qualquer parte da embarcação e das artes de pesca (redes, alcatruzes, anzóis, etc.), não entram para estas despesas, pois são única e exclusivamente da responsabilidade do dono do barco.
"Os Sinaleiros do Mar na Ericeira", Leandro dos Santos - 1994

Ti Estado

António Elisário Mira
"O Estado"

Aquele que foi e ainda é considerado, pela grande maioria dos velhos pescadores da Ericeira, como o melhor Sinaleiro que tiveram. Nasceu na Ericeira a 1 de Abril de 1901, filho de pai incógnito e de Judite da Trindade. Tendo como avós maternos Elisário da Silva e Alexandrina Maria Mira, casou com Gertrudes "Cacau" de quem teve cinco filhos.
Foi Sinaleiro desde 1938, até poucos meses antes da sua morte, em 1952. Durante estes 14 anos o "Ti Estado" como era conhecido, pôs centenas de pescadores em terra firme. As mães e as mulheres desses pescadores chegavam-lhe a pedir, com as lágrimas nos olhos, que salvasse os seus homens. Na grande maioria das vezes assim fez. Apenas se reconhece um único acidente, em 21 de Agosto de 1938, com um barco saveiro, onde iam dois homens a bordo. Este naufrágio deu-se devido à "estocada de água" que vinha do norte (Algodio), levando a frágil embarcação para cima da "lage grande"*. Os homens, já muito cansados de virem a remar de muito longe, não tiveram forças suficientes para vencer aquela corrente. Estes 2 homens só foram salvos devido à corajosa intervenção do "Ti" Joaquim Lopes Fortunato "Fala grossa" e do "Ti" Anastácio Arsénio "Palaia".
*- Esta "lage" de grande dimensão fica situada logo na parte sul da Praia da Ribeira (Praia dos Pescadores).
Barco típico dos anos 40 do século passado, na Ericeira. Esta situação "tipo surf" era habitual no nosso porto. Nesta foto o mar nem sequer estava bravo.
Havia um código de honra entre o Sinaleiro e os pescadores que consistia no seguinte: àquele só competia "tirar" as embarcações fora da rebentação do mar, além de medir o "raso" que desse tempo para chegarem à praia. O que se passasse, entretanto, era da responsabilidade dos homens que estavam dentro da embarcação. Não podemos esquecer que a grande maioria destas embarcações eram movidas a remos. Quem nunca passou por esta situação de depender do Sinaleiro, dificilmente compreenderá a mística que existe entre este e os pescadores. Tanto para uns como para os outros é o sentir de uma grande impotência, de uma grande pequenez em relação à força cega e monstruosa do mar.
Conta um pescador actual, o Alberto Bispo Mira "Mau-Olho", neto do "Ti Estado" que um dia, quando o seu avô estava fazendo os sinais, isolado de tudo e de todos, o filho, já homem feito, chegou-se ao pé dele perguntando se podia aprender. Logo o "Ti Estado" ordenou que o filho se retirasse dali, porque não sabia a tremenda responsabilidade que era ser Sinaleiro. Por aqui nos podemos aperceber do grande altruísmo destes homens que nada recebiam mas que tudo davam. Ocasiões houve em que todo este trabalho durava o dia todo; a maré vazava, tornava a encher e o Sinaleiro lá continuava "tirando", uma a uma, as embarcações fora do perigo do mar. Segundo dizem os pescadores mais antigos, a altura da maré em que o "Ti Estado" mais gostava de fazer sinais era à meia maré. Era habitual nele "marcar o mar", baixando-se até ficar com os olhos ao nível do muro das ribas, ficando apenas a ver-se a sua boina.
António Elisário Mira "Estado" faleceu, no Hospital da Misericórdia da Ericeira, no dia 8 de Setembro de 1952.
"Os Sinaleiros do Mar na Ericeira", Leandro dos Santos - 1994

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Ti Valongo



António Rodrigues
"Valongo"
Natural de Valongo (Encarnação), nasceu em 1854. Era filho de Joaquim Rodrigues e de Felicidade de Jesus. Veio para a Ericeira já casado com Maria da Conceição, no começo das armações, em 1895, onde exerceu a actividade de pescador durante anos. Era com o seu barrete preto que do alto do Forte de Nossa Senhora da Natividade*, fez sinais entre 1927 e 1934. A família mais chegada que se encontra viva é a neta Esmeralda Baptista, mãe do Vitor "Estricolique" e do José António "Aurora". Morreu na Ericeira, às 13H00 do dia 7 de Janeiro de 1949, com 90 anos de idade.
*- Há documentos dando este nome ao Forte da Guarda Fiscal, mandado construir por D. Pedro II, em 1670, para defesa do porto da Ericeira, dos corsários que na época demandavam, habitualmente, toda esta costa marítima.
"Os Sinaleiros do Mar na Ericeira", Leandro dos Santos - 1994

António Morais


António José Morais
"Capitão Maluco"
Cabo de Mar na Ericeira, entre 1924 e 1927, período em que fez de Sinaleiro
Apesar dos pais serem da Ericeira, nasceu em Lisboa, na Freguesia de S. Paulo, a 24 de Novembro de 1904. Era filho de José António Júnior e de Olinda Morais Cardoso. Casou em 14 de Março de 1926, com Luisa Maria Duarte, do lugar da Baleia (Carvoeira), não deixando descendência directa. É tio de Elídio e José Morais, assim como de José Morais Ramos "Gamanço". Assentou praça na Marinha, onde tirou a especialidade de sinaleiro da Marinha de Guerra. A alcunha vem do facto de o António José ser da Marinha e do arrojo com que ele enfrentava o mar, saindo e entrando o porto da Ericeira, numa pequena embarcação do pai, debaixo de grandes "levas de mar"*. Foi criado na Praia da Ribeira, tendo como alcunha, em pequeno, "O gaiato da praia". Fez sinais entre 1924 e finais de 1927, período em que exerceu a actividade de cabo-de-mar, na Ericeira. Morreu em 1928, em Lisboa, na Calçada do Cascão, nº5, 1º Dtº, cerca de um ano e meio depois do seu casamento, sofrendo de tuberculose que tinha contraido 6 meses antes.
*- Termo usado pelo pescador ericeirense para definir o mar bravo, consoante o contexto em que é aplicado.
"Os Sinaleiros do Mar na Ericeira", Leandro dos Santos - 1994

Ti Chico Algarvio


Francisco dos Santos Mártires
"Chico Algarvio"

Nasceu na freguesia de Santa Maria de Lagos (Algarve) em 28 de Novembro de 1884. Era filho de João Ribeiro Resende Castela e de Felicidade dos Santos Mártires.
Após a morte de sua mãe, por volta de 1890, foi morar para Setúbal, onde viveu até vir para a Ericeira como mestre duma armação no ano de 1907, tendo exercido essa actividade até cerca de 1925. Casou pela igreja em 25 de Dezembro de 1924, sendo já casado pelo Registo Civil, desde Novembro de 1910, com Mafalda da Conceição dos Santos, filha de Eduardo dos Santos "O Pirata" e de Mariana da Conceição "A Palrita". Desta união nasceram 8 filhos, 6 dos quais ainda vivos. O historiador ericeirense Leandro Miguel dos Santos, é um dos seus netos.
Fez sinais durante o período de 1921 a 1923 (em conjunto com Manuel dos Santos Caré), começando por fazer só às embarcações da armação, passando mais tarde a todas as outras.
Morreu na Ericeira, no Hospital da Misericórdia, no dia 4 de Novembro de 1960, com 76 anos de idade.
"Os Sinaleiros do Mar na Ericeira"
Leandro Miguel dos Santos - 1994

Ti Caré


Manuel dos Santos Caré

Nasceu a 16 de Junho de 1863, na Ericeira. Era filho de João dos Santos Caré e de Maria Gertrudes da Conceição.
Viveu vários anos no Brasil, donde regressou para casar, em 15 de Agosto de 1895, com Maria Teresa de Barros Caré, Natural de Ribamar, de quem teve 5 filhos, um dos quais António Caré, já falecido, era tio padrasto de Eugénio Caré, também já falecido.
Foi proprietário de uma taberna, na Rua de Baixo, que a sua mulher, Maria Teresa, manteve em actividade mais alguns anos após a sua morte. Ainda hoje, há pessoas que se recordam desta taberna e da sua proprietária.
O Manuel dos Santos Caré foi membro da Junta de Freguesia durante vários anos.
Fez sinais no período de 1921 a 1924.
Morreu em 23 de Janeiro de 1926, com 62 anos de idade.
"Os Sinaleiros do Mar na Ericeira"
Leandro Miguel dos Santos - 1994

Ti Rancolho

Bartolomeu Neto
"Rancolho"
Nascido na Ericeira, em 22 de Abril de 1850, era filho de João Neto "Rancolho", marítimo, e de Joana. Casou em 30 de Junho de 1872, com Henriqueta da Conceição.
A sua descendência leva-nos à numerosa família de alcunha "Rancolha", conhecida por grande parte dos ericeirenses.
Segundo o testemunho de uma neta, a "Ti" Francisca da Silva "Rancolha", o seu avô Bartolomeu Neto, fez sinais de 1912 a 1921.
A responsabilidade que o Ti Bartolomeu sentia quando tinha de fazer sinais, perturbava-o de tal forma que frequentemente tinha de utilizar a casa de banho, segundo depoimento da sua neta, acima referida. Por aqui se pode imaginar o enorme sentido de responsabilidade que estes homens tinham em relação à vida dos seus conterrâneos pescadores.
Bartolomeu Neto deixou-nos a 30 de Abril de 1925.
"Os Sinaleiros do Mar na Ericeira"
Leandro Miguel dos Santos - 1994

Ti Chico Piloto



Francisco Almeida Piloto
Banheiro da Praia do Sul. A dúvida que existia entre este Francisco de Almeida e o Francisco de Almeida Marrão. Qual deles tinha sido sinaleiro no embarque da Família Real.
A dúvida era se tinha sido este sinaleiro ou Francisco Nascimento de Almeida Piloto (nascido em 3 de Janeiro de 1841, que casou com Cristina do Carmo em 25 de Abril de 1870, tendo falecido a 27 de Fevereiro de 1915.
Era pai da "Ti" Aurora Piloto, e foi banheiro durante muitos anos, na Praia do Sul, tendo salvo, entre muitas, a vida ao Dr. Joaquim Pedro Alves Crespo.)
Francisco de Almeida Marrão foi sinaleiro no período entre 1908 e 1912, dedicando-se posteriormente à actividade de banheiro na Praia do Algodio, da qual tinha a concessão por Carta Régia, bastante anterior ao começo do século XX. Mais tarde, de 1934 a 1938, volta a fazer sinais.
Tinha por hábito mandar avançar os barcos, assobiando e fazendo gestos com os braços na sua grande e imponente figura. Foi pessoa bastante estimada tanto pelos marítimos locais, como pelos veraneantes que, naquela época, frequentavam as nossas praias.
Faleceu na Ericeira, por volta das 09H00, do dia 9 de Junho de 1949, com 85 anos.
Bibliografia: Do livro "O Embarque - Um dia na História de Portugal", 1ª edição, no inquérito feito pelo Sr. Júlio Ivo, a 27 de Outubro de de 1928, na pág. 78, diz o seguinte: "Como o mar estivesse um tanto picado, Carrilho tinha mandado para o Forte o antigo Sinaleiro do porto (não tinha lugar oficial, os marítimos pagavam particularmente e também esteve algum tempo ao serviço da firma C. Rodrigues & Comp.ª, o seu serviço consistia em indicar com o chapéu ou com o barrete, de que usava, o momento em que as barcas deviam sair ou entrar no porto; já faleceu), chamado Bartolomeu Neto.
Nota: Em virtude de, o inquérito feito pelo Sr. Júlio Ivo já ter passado 18 anos à data do embarque da Família Real, é muito possível que a pessoa, ou pessoas que foram questionadas, tenham dito que o Sinaleiro na altura era o Bartolomeu Neto. Convém aclarar a verdade:
Primeiro, conforme folha de pagamentos passada pela firma Rosa & Comandita, a todos os que colaboraram nesse embarque, não consta o nome de Bartolomeu Neto, mas sim o de Francisco de Almeida (Sinaleiro).
Segundo, O Ti Anastácio Casado diz lembrar-se muito bem de, quando tinha 13 anos (idade em que tirou a Cédula Marítima), o Francisco d'Almeida Marrão já fazer, há 2 ou 3 anos, sinais às embarcações.
(Folha de pagamento aos marítimos da Ericeira que participaram no embarque da Família Real para o exílio em 5 de Outubro de 1910)
Bernardino Rocha, 1.000 réis - João Fernandes Mano, 1.000 Réis
Hilário, 1.000 Réis - José da Inês, 1.000 Réis
Artur Barreira, 1.000 Réis - António Pão Alvo, 1.000 Réis
António Caboz, 1.000 Réis - José Batista, 1.000 Réis
António Inácio, 1.000 Réis - José Safarujo, 1.000 Réis
André de Almeida, 1.000 Réis - José Virão, 1.000 Réis
João Moraco, 1.000 Réis - Luis Virão, 1.000 Réis
Henrique Mira, 1.000 Réis - Joaquim Casado (remador), 1.000 Réis
Francisco Gaudino, 1.000 Réis - Joaquim Meadinho, 1.000 Réis
Manuel de Barros, 1.000 Réis - António Martelo (mestre), 1.000 Réis
Domingos Dias, 1.000 Réis - *Francisco de Almeida (sinaleiro), 300 Réis
António Santos Reis, 1.000 Réis - Vicente Moraco, 1.000 Réis
Domingos Faronca, 1.000 Réis - 16 ajudantes (300 Réis cada), 4.800 Réis
TOTAL: 29.100 Réis
Ericeira, 5 de Outubro de 1910 - P. P. Rosa & Commandita -
Ericeira - Buarcos - Ericeira - José Camarate Carrilho
"Os Sinaleiros do Mar na Ericeira"
Leandro Miguel dos Santos - 1994

Ti Chico Marrão

Francisco d'Almeida Marrão

Nasceu na Ericeira, no dia 21 de Fevereiro de 1865. Filho de Joaquim d'Almeida Marrão e de Carlota da Conceição "Jagoza"*. Em 17 de Janeiro de 1889 casou com Maria Isabel, de quem teve dois filhos.
Da sua descendência viva, chega-nos o seu neto Joaquim d'Almeida Marrão, grande entusiasta e historiador da nossa Ericeira, além de colaborador do Arquivo-Museu.
Através do testemunho vivo do "Ti" Anastácio Casado (nascido em 1898), foi desfeita a dúvida em relação ao Francisco de Almeida (sinaleiro), que em 5 de Outubro de 1910, fez sinais para o embarque da Família Real para o exílio, conforme documento de pagamento, a todos os que colaboraram nesse embarque, passado pelo escritório da firma Rosa & Comandita.
*- Em documentos antigos podemos encontrar , pela primeira vez, esta alcunha em 1784. Alcunha esta dada a uma senhora de nome Ana Maria, natural de Fonte Boa (Carvoeira), casada com José Lopes Brioso. O documento onde aparece este nome pela primeira vez, é no Livro de Registos de Baptizados que se encontra no Arquivo-Museu da Santa Casa da Misericórdia da Ericeira, referente ao baptizado de um indivíduo do sexo masculino de nome José, como irá aparecer em todos os assentos de baptismo dos nove filhos desta Ana Maria. A Carlota da Conceição, mãe de Francisco d'Almeida Marrão era neta da mesma Ana Maria "Jagoza", que faleceu em 1840.


Fotografia tirada na praia do Algodio por volta de 1942 (cedida gentilmente pelo Dr. Sebastião Dinis, um dos miudos deste grupo). Francisco Almeida Marrão
"Os Sinaleiros do Mar na Ericeira"
Leandro Miguel dos Santos - 1994

Ti Baucochinha

Nasceu na Ericeira no dia 26 de Outubro de 1826. Filho de Faustino Alberto e de Gertrudes Inácia. Casou com Mariana da Conceição em 9 de Agosto de 1854. Enviuvou em 3 de Março de 1868, voltando a casar com Quitéria da Conceição em 12 de Janeiro de 1869. A sua descendência leva-nos hoje, ao bisneto Jerónimo Alberto, mais conhecido por "Mita", assim como à neta D. Adelaide Alberto Estrela.
A alcunha "Baucochinha" que se manteve durante duas gerações, começou no Manuel Alberto e chegou aos nossos dias. No entanto, em documentos da época consta, não a alcunha "Baucochinha" mas sim "Baucochina".
Há registo de actividade deste sinaleiro, no início do século passado, mais precisamente entre 1902/1903, a finais de 1907. Pouco mais se sabe dele.
Aqui fica a homenagem a este jagoz, homem do mar, que nos deixou a 29 de Fevereiro de 1908, com 81 anos de idade.
"Os Sinaleiros do Mar na Ericeira"
Leandro Miguel dos Santos - 1994

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Ti Cachafana

Vitorino Dias
"Cachafana" também conhecido por "O Pregoeiro"

Nasceu na Ericeira no dia 12 de Dezembro de 1833. Filho de Ângelo Dias "Cachafana" e de Maria da Conceição. Em 18 de Agosto de 1857 casou em primeiras núpcias com Maria Madalena a qual morre em 5 de Junho de 1861, deixando 2 filhos menores; João e Lúcio.
Do Lúcio Dias, ainda hoje se encontram vivos os netos; Aníbal Franco Alberto "Aníbal da Marta" e suas irmãs Emília Franco Alberto "Emília Galdera", Manuela e Paulina Franco Alberto. Joaquim Leitão "Reguingas" é bisneto deste Lúcio.
Do "Ti" Vitorino sabe-se que voltou a casar em 1862, com Jesuína da Conceição, deixando deste casamento 14 filhos, cuja descendência ainda hoje encontramos na Ericeira. Carmino Dias Pedro é bisneto do "Ti Vitorino".
Desta personagem fica-nos a grata imagem dum ericeirense com um grande sentido de altruísmo do melhor que tinha para dar aos seus conterrâneos. Era uma figura extremamente popular e simpática, ora percorrendo as ruas avisando a população de algum objecto perdido ou achado, ora anunciando o começo da lota na praia da Ribeira.
Calcula-se que tenha feito sinais com o seu barrete, desde 1894 até cerca de 1902.
Faleceu a 10 de Abril de 1907, com 73 anos de idade.
"Os Sinaleiros do Mar na Ericeira", Leandro dos Santos - 1994

Anjos da guarda (3)


Até ao final dos anos 30 do século XX, os sinais eram feitos ora com o barrete que o sinaleiro usava, ora com a boina ou o boné, ou ainda com um pano qualquer, até com a própria camisa.
De essa altura para cá, começaram a ser feitos com bandeiras (das quais ainda existem os originais), como já foi referido anteriormente.
O sítio onde as embarcações esperavam os sinais (antes de o molhe estar feito), era na "pedra das sete braças" ou a povoação do Barril da Carvoeira, à vista de quem está no mar.
Hoje o sinaleiro já não faz os sinais com as bandeiras mas com o sistema de rádio com que todas as embarcações estão apetrechadas.
Muito importante era também o trabalho feito pelas mulheres dos pescadores, quando "os seus homens" (homes) se encontravam no mar à noite e este começava a piorar. Eram elas que no largo de S. Sebastião ou na ponta de Santa Marta (Pedra do Fogo) acendiam fogueiras, para os seus maridos se aperceberam do estado mais alterado do mar.
Entre todas essas mulheres anónimas, uma se distinguiu: a "Tia" Maria Garamanha (alcunha Maria dos Preparos), mulher do "Tio" Bernardino Garamanha. Tinha ela o hábito, sempre que o seu marido se encontrava a pescar à noite, "marcar o mar" e quando via que este piorava, imediatamente acendia uma fogueira na Ponta de Santa Marta. Este sinal que o marido conhecia, assim como todos os outros pescadores, era um alerta para regressarem imediatamente a terra.
Era também hábito, por essa época, quando havia nevoeiro ("néuba"), soprar em grandes búzios que emitiam um som característico entendido por todos os pescadores.
Até há bem pouco tempo podia-se recolher estes testemunhos "vivos" nas pessoas do "Ti" José dos Reis Marques "Zé Pestana", "Ti" Joaquim Fortunato "Fala Grossa", "Ti" Francisca da Silva "Rancolha", "Ti" Anastácio Casado e "Ti" Joaquim Marrão.

Devido ao carisma destes ericeirenses e à sua importância como sinaleiros, deveria considerar-se a sua homenagem na forma de uma estátua num dos locais onde exerciam essa actividade.
"Os Sinaleiros do Mar na Ericeira"
Leandro Miguel dos Santos - 1994

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Anjos da guarda (2)

Mastaréu mandado levantar no sítio do Marco da Peça, "Furnas"
(tinha este nome em virtude de haver neste sítio uma pequena peça de artilharia, para defesa do porto)
O documento mais antigo que dá referência a esta actividade de sinaleiros do mar, data de 28 de Agosto de 1855 *. Nele é concedida licença, pela Câmara da Ericeira, a Gerardo Pereira Rodrigues, Regedor desta Vila, para poder arvorar um mastaréu com bandeiras para sinais que servissem as embarcações. O sítio escolhido foi o Marco da Peça (na ponta de Santa Marta), onde ainda hoje se encontram os ferros cravados na rocha.
Mais tarde, finais do século XIX, novo mastro de sinais foi colocado no local do Forte da Guarda Fiscal. Os sinais eram feitos através de bandeiras convencionadas, colocadas na adriça do mastro, correspondentes ao estado do mar. A bandeira branca significava que o porto estava fechado. As embarcações que viessem ainda longe do porto, ao verem esta bandeira, invertiam a rota para Cascais ou Peniche, consoante o vento soprasse do quadrante norte ou sul. As bandeiras vermelha e branca, içadas juntamente na adriça, significava que o porto dava entrada, mas com a ajuda do sinaleiro.
Este mastro foi derrubado no princípio dos anos 60, com o consentimento de alguém que, de marítimo nada tinha. Contrariamente a tempos anteriores, na época do "marujo" Delegado Marítimo**, o referido mastro era mantido sempre em bom estado de funcionamento, por onde passaram em aprendizagem náutica uma geração de pescadores da nossa terra.
* - Por esta época, 1849, o número de embarcações de todos os lotes, incluindo as do comércio de cabotagem existentes na Ericeira, era de 98, empregando 670 homens. As pescas eram feitas ao longo do nosso litoral, estendendo-se muitas vezes às costas de Marrocos, como também nos últimos anos, foram feitas 3 expedições aos bancos de pesca da Terra Nova. As nossas rascas e caíques (embarcações antigas da Ericeira) faziam habitualmente transporte de mercadorias e de pessoas tanto para o Algarve como para o Norte e também para as nossas ilhas.
**- A Ericeira nem sempre foi Delegação Marítima, anteriormente tinha sido Capitania. A 15 de Março de 1844, a Câmara da Ericeira, através do seu Administrador, o grande eiriceirense Francisco José da Silva Ericeira, pediu à Rainha Dona Maria II, a criação da Capitania do Porto, cujos serviços eram administrados pela Alfândega da Ericeira. Francisco José da Silva Ericeira tornou-se o 1º Capitão deste porto, em 1846. Numa pesquisa à extinção da Capitania da Ericeira, foram encontrados no arquivo da Marinha em Lisboa, dois documentos que conduzem muito perto da data da sua extinção. O primeiro documento de 3/10/1882 diz que a Ericeira ainda era Capitania. O segundo de 17/11/1882 refere-se à Ericeira já como Delegação Marítima.

"Os Sinaleiros do Mar na Ericeira", Leandro dos Santos - 1994

domingo, 21 de dezembro de 2008

Anjos da guarda (1)

Uma das mais típicas figuras da Ericeira, foi sem dúvida a do sinaleiro da entrada do porto.
A ele se ficou a dever ao longo dos tempos o salvamento de vidas e bens, resgatados à fúria do mar.
Os conhecimentos necessários ao exercício da sua missão, eram adquiridos através da observação do mar enbravecido, hora após hora, dia após dia e durante uma vida inteira.
Ainda está bem presente na memória dos jagozes dos anos 30, 40 e 50, a figura do sinaleiro dos mares daquele tempo.
Pescador voluntário que, quando havia embarcações ao largo, com o mar bravo, era ele que com a sua sabedoria indicava aos barcos em perigo, as escassas e apertadas oportunidades para, entre duas séries de vagalhões (andaços), demandarem a praia e "terra mãi" como diziam os pescadores da época.
Antes do aparecimento dos barcos a motor (1948), os jagozes navegavam em pequenos barcos a remos e à vela, não muito diferentes dos marinheiros da antiguidade.
Por vezes acontecia o mar enbravecer de repente com os barcos no mar (chegavam a ser 50), durando todo o dia, o trabalho heróico do sinaleiro.
Os barquitos, pequenos e lentos, demoravam uma angustiante eternidade a vencer o intervalo desde a zona da rebentação ("pancada do mar") até à praia, tendo de atravessar a forte corrente vinda da praia do Algodio, que os empurrava para a zona das rochas a sul do porto (antes da construção do molhe) e que chegou a dar origem a naufrágios e mortes.
Nesses tempos heróicos, o observador colocava-se ora no muro das arribas (camarote natural, com mais de 20 metros de altura), ora no alto do forte da Guarda Fiscal e nele se cravavam os olhos de centenas de pessoas, acompanhando os seus gestos que encaminhavam para o porto de salvação, homens e barcos.
E tudo isto se fazia sem pagamento nem subsídio, inteiramente de graça, carregando uma tremenda responsabilidade sobre os seus ombros.
Era nestas circunstâncias que se fazia sentir a acção meritória destes jagozes, verdadeiros anjos da guarda.
(baseado no livro "Os sinaleiros do mar na Ericeira" de Leandro dos Santos, 1994)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Avião ao mar !


No dia 16 de Junho de 1942, um avião Bristol Beaufort – AW303(?), do 217º esquadrão da Real Força Aérea inglesa, que tinha saído de Portreath com destino ao Médio Oriente via Gibraltar, amarou de emergência a duas milhas da nossa costa.
Este avião de guerra incorporava-se num movimento de esquadrilha para Malta. Uma avaria num dos motores obrigou o avião a amarar ao largo da Ericeira.
A tripulação abandonou o aparelho, que se afundou em cerca de quatro minutos. Num bote remaram em direcção a terra. Pelo caminho colocaram os documentos secretos numa caixa de metal que atiraram ao mar.
Esta tripulação era constituída pelos seguintes elementos:
Sargento - Armstrong,
Sargento - D. Salisbury,
Sargento - G. F. Williams,
Sargento - E. C. Eden.
Todos de nacionalidade inglesa.
Perto da praia foram recolhidos por três barcos de pesca. Foram tratados a alguns ferimentos ligeiros pelo médico da localidade. Receberam também comida e roupa seca. No posto de polícia foram revistados e tiraram-lhes as armas. Após curto interrogatório, seguiram para Lisboa onde contactaram a embaixada inglesa, alojando-se no Suisse Atlantic Hotel.
No dia seguinte foram levados para as Caldas da Rainha.
Foram repatriados no dia 12 de Julho.
Salisbury desapareceu a 30 de Setembro de 1942 quando voava com a esquadrilha 42.
É recordado no Runnymede Memorial.
"Aterrem em Portugal!"
Carlos Guerreiro - 2008
Ora bem, deve haver certamente na Ericeira, alguém que tenha assistido a este episódio e que ainda esteja vivo para o testemunhar. Talvez tenha até passado a história a familiares que a saibam ainda contar. Talvez até hajam fotos do acontecimento.
Se for esse o seu caso, por favor contacte o endereço de email - ericeira.58@gmail.com
João Bonifácio

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Origem do Jagoz


Não se sabe ao certo a origem da palavra Jagoz.
Desconhece-se se derivará de uma outra palavra ainda mais antiga e corrompida ao longo do tempo.
Sabe-se sim, que as tentativas para a definir (algumas pejorativas) não recolhem o concenso geral dos estudiosos da etimologia.
Os jagozes, noutros tempos, constituidos na sua maioria por gente do mar, formaram, durante muitos séculos, um grupo étnico-geográfico, único, diferenciado dos restantes habitantes da região saloia.
Pensa-se que esta designação tenha acompanhado o nome primitivo da Ericeira, possivelmente de origem Fenícia.
O jagoz é valente, destemido, criativo, rude, conhecedor dos segredos do mar, amigo, condescendente, amante da liberdade e da natureza.
"Magnetizado" pelas forças telúricas desta terra mágica, temperado na brisa agreste do mar, fortificado espiritualmente nas águas das suas fontes, o Jagoz onde quer que esteja vive, respira, ama a sua adorada Ericeira. Sente horgulho na sua História e na memória dos seus velhos marinheiros.
João Bonifácio

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Avião no quintal


Quem, vindo de Sintra, se desloca à Ericeira, num fim de semana qualquer, a fim de esticar um pouco as pernas, arejar as ideias, encher os olhos de mar azul e os pulmões de ar puro, ao passar pela Carvoeira (a poucos minutos da praia da Foz do Lizandro), dá de caras com este "Fiat" da Força Aérea Portuguesa estacionado neste quintal, à beira da estrada.
Ao que parece o dono da máquina é um entusiasta da força aérea. Imagine-se se tivesse trabalhado na marinha mercante...
João Bonifácio

Pinheiro contorcionista

Como qualquer ser vivo, este pinheiro achou que o lugar onde nasceu não era o melhor para passar os seus dias e vai daí decidiu mudar de lugar.
Como não podia simplesmente arregaçar as raizes e deslocar-se... torceu-se, retorceu-se até que achou o ponto ideal para a sua verticalidade e só depois deixou-se subir na vida.
Este comportamento acontece exactamente com o ser humano, só que enquanto as árvores procuram o melhor ponto na natureza onde o fluxo das linhas vibratórias lhes é mais favorável, o homem fá-lo por uma questão de sobrevivência, completamente alheado das forças da natureza.
Se montar tenda no parque de campismo da Ribeira d'Ilhas, na Ericeira, procure o pinheiro da foto, sente-se junto dele e reflicta um pouco. Respeite-o porque é um ser vivo com muita personalidade.
Tal como você.
João Bonifácio

Fonte da Margarida


À entrada da Ericeira, esquecida entre arbustos e canaviais, acham-se os restos do que foi uma das mais famosas e concorridas fontes desta vila.
De água cristalina e sabor sem igual, foi nos anos 30 do século XX explorada por um concessionário que mandou construir um edifício a que chamou de fábrica, mais parecido com um pequeno castelo. Edifício esse que ocupou toda a área de um antigo tanque, outrora usado pelas gentes do campo.
Ora diziam esses mesmos antigos que já no tempo dos seus avós essa fonte era usada, desconhecendo de que época era a sua construção. Diziam ainda que na parede então existente, que ficaria encostada à vertente e que serviria para suster as terras, chegaram a ver gravadas na pedra, imagens de mulheres vestidas de finos véus, enchendo bilhas na fonte. Por baixo, inscritos numa lage rectangular, podiam ver-se caracteres desconhecidos. Talvez esta fonte seja até de origem pré-romana.
A ser assim terá mais de dois mil anos certamente. Esses vestígios primitivos, se não foram destruídos pela intervenção do século XX, ainda lá devem estar incorporados na construção. Podemos até ver ainda no seu interior uma coluna de pedra, usada para apoio das bilhas, já bastante desgastada, o que parece conferir-lhe garantida antiguidade. Pena que não haja registo das características e do estado de conservação da fonte primitiva.
Ainda se podem ver cravadas na vertente, umas escadas de pedra (foto) que parecem ser muito velhas e uma entrada de um túnel que se encontra obstruído. Para além disso, nada mais.
E para ali está abandonada uma relíquia do passado, sofrendo actualmente a pressão urbanística que se desenvolve já muito perto. Um destes dias ao passar no local, poderá ouvir-se dizer: ali, debaixo daquele edifício moderno, jaz uma fonte milenar, que ninguém teve a coragem de recuperar, esquecida de todos.
João Bonifácio

Fonte do Cabo



Quem entra na vila da Ericeira pelo lado Sul, invariavelmente passa junto à Fonte do Cabo.
Fonte centenária (tem uma inscrição em caracteres góticos e uma data: 1457), é um dos exlibris desta localidade.
Para muitos de nós, foi um marco na nossa infância. Testemunha muda das nossas brincadeiras protagonizadas nos terrenos próximos a que chamávamos "a Horta", via beber nas suas bicas de água fresca, todo o género de aventureiros; piratas, cawboys, índios, cavaleiros medievais, caçadores de tesouros, samurais, todo o tipo de personagens que encarnávamos enquanto as nossas mães lavavam a roupa no tanque contíguo. Nos dias de mais calor, via-se transformada em piscina onde nos banhávamos. Magotes de fedelhos de palmo e meio, atirávamos água uns aos outros em brincadeiras frenéticas, saindo dali com os pequenos corpos refrescados e as almas lavadas.
Tempos que recordo com muito carinho e alguma nostalgia.
O topónimo desta Fonte do Cabo vem do facto de na antiguidade se encontrar isolada na margem sul do Rio dos Fundos, rio que trazia nessa época um caudal considerável e que caía em cascata no mar onde está hoje a rampa de acesso à Praia do Sul, mais propriamente, no desaparecido portinho de revéz (onde se encontram hoje as piscinas do Hotel).
Margem que, por ter terrenos mais altos e falésia com furnas na zona entre a fonte e a praia, se parecia com um cabo da costa oceânica. Isto para quem a olhasse do lado norte. Significava também o extremo da localidade.
Consta que a antiga fonte estava voltada para poente acompanhando a velha estrada que conduzia à Lapa da Serra.
Dizem também os antigos que para ser um verdadeiro jagoz tinha-se de beber primeiro, água da Fonte do Cabo.
Tudo isso desapareceu. Ficou a velha Fonte e pouco mais.
Ficou efectivamente, um pouco mais. Refiro-me à mina de água que conduz à sua nascente, escondida do olhar de todos, enterrada nas profundezas da encosta, a cerca de 100 metros de distância, para leste. Ainda há pouco tempo se podia ver um velho morador (já não se encontra entre nós) sentado numa cadeira junto do portão de ferro da entrada, do lado direito da fonte, que "cobrava umas coroas" a quem quisesse fazer uma visita à velha mina, percorrendo o 'caminho iniciático' até à nascente. Como que uma viajem no tempo que conduz aos primórdios da história deste lugar mágico.

João Bonifácio

O pontão, uma vez mais...


Mais uma vez se vai recuperar o pontão de protecção à entrada de embarcações da praia dos pescadores da Ericeira, mais conhecido por porto da Ribeira.
E digo mais uma vez porque, de todas as vezes que o reconstruiram, cometeram o mesmo erro ao ignorarem a força do mar. E o mesmo mar, por altura das tempestades de Inverno, com uma facilidade impressionante, arrasa o pontão, deixando-o na situação que hoje se pode ver na foto.
Há quem diga que o pontão é alvo de uma maldição porque se usou, inicialmente, pedras do santuário megalítico da Barreira, Odrinhas. Não sei se assim é. No entanto já se registaram vários acidentes estranhos e algumas mortes, que ficaram na triste memória desta obra.
Não sei se as obras de recuperação, já iniciadas, serão feitas nos mesmos moldes que as anteriores. Parece que desta vez, não.
Se não se mudar de estratégia, podem ter a certeza que, uma vez mais, será deitar dinheiro ao lixo.
Ou seja, ao mar.
João Bonifácio